Vizinhanças Hospitais e Violência Doméstica

Diria mesmo que a vizinhança é a nossa melhor segurança

Esta frase de um morador da classe média a residir num bairro de habitação social, projetado pelo arquiteto Álvaro Sisa Vieira, de uma reportagem do Jornal Publico, foi o mote para uma pequena crónica.

Vivi 5 anos numa antiga Travessa na Ajuda, em Lisboa, muito estreita, só com um sentido, empedrado grosso, de finais do século XIX. Do outro lado da rua, havia uma fileira de moradias muito pequenas e pobres, de uns 20 e poucos m², 1 quarto, uma sala e uma cozinha com um cubículo onde estava uma sanita só, sem duche, ou lavatório de mãos. Numa delas nem água tinham, precisavam de ir buscá-la a uma torneira pública, um pouco longe ainda.

Miséria, velhice, violência doméstica, um rapaz com deficiência mental que ficava por baixo da minha janela, aos gritos, um pai e irmão alcoólicos, o pai que batia na mãe e no filho, ela que se escondia na entrada do meu prédio com medo dele, um velhote diabético que ficou sem a perna e ficou para sempre numa cadeira de rodas, recusando-se a sair, e a mulher, a DBeatriz, muito doente, mas muito prestável.

Quando comprámos a casa, o proprietário do 2º piso, pretendeu aumentar o prédio, de 2 para 3 pisos – vamos ter que reforçar os pilares, é só um tempinho, vamos colocar uns andaimes…. A casa parecia uma mina, completamente entaipada… Depois verificaram que faltava um pilar, existente na planta original da casa, mas não figurando na dita. A nossa sala ficou com um buraco até às fundações e por entre episódios rocambolescos, como o da bolacha de betão saindo pela nossa chaminé, passou-se quase um ano à espera, num quarto reles, onde entretanto vivíamos.

Passado algum tempo, depois de lá habitarmos, e de ter chovido uns 2 meses sem parar, a humidade escorria pelas paredes, as madeiras e os objetos de verga encheram-se de bolor. Ao afastarmos a cama da parede, havia uma manta espessa de bolor, pavorosa. O estuque das paredes cedia à pressão dos dedos… Viemos a descobrir que a canalização tinha uma fuga e era responsabilidade desse tal proprietário.

Resolvemos fazer obras na casa… Mudar alguns pavimentos, canalização e afins. A trupe de operários, inspirados por litros de vinho tinto, de difícil trato e pior qualidade de trabalho, contribuiu para a nossa descrença na natureza humana, ou no nosso azar persistente.

Para culminar a nossa epopeia infeliz, apesar de nos termos informado a um vizinho, da qualidade e honestidade de quem lhe tinha colocado uma nova porta, encomendamos a essa pessoa uma porta para a cozinha, dando um adiantamento de 20 contos. Nunca mais soubemos dele…

À noite arrastavam as latas do lixo de cada prédio pelo empedrado até ao fim da rua… Por cima de mim, morava um casal com uma filha universitária. O pai trabalhava numa criação de animais, devia ser de porcos, em plena cidade, e a sua chegada a casa fazia-se anunciar de forma olfativa e um pouco mais tarde de forma ruidosa, pela chuva de molas de roupa pendurada a cair na chapa que cobria o meu quintalinho. Um dia, os dejetos começaram a sair em cascata pela nossa sanita, acompanhados por pensos higiénicos e outros objetos não apropriados. Corremos ao andar de cima para pararem imediatamente com a descarga, e chamando a atenção para os pensos, a filha respondeu – qual o problema? Mais uma obra na canalização…

Oh vizinhas, está a chover! era um alerta bem vindo e saudoso. A Beatriz e a vizinha do 2º esquerdo tinham a minha chave, o que era uma mais-valia de conveniência.

Mudei-me para outro bairro de Lisboa, as Telheiras, para estar perto da clínica de diálise. Mais uma casa pequena, um T1, mas com despensa e uma porta enorme da sala que dava para um relvado, simpática. Por cima morava um casal, ele médico de radiologia, ela, enfermeira no mesmo Hospital. Tinham discussões frequentes, ele insultava-a com uma enorme violência verbal, não sei se lhe batia, mas um dia telefonámos à policia, que nos respondeu, não poder nada fazer, só no caso de ser um dos membros do casal a apresentar queixa. O “entre marido e mulher não metas a colher”, típico do nosso estilo e legado masculino patriarcal e misógino, que ainda prevalece na nossa sociedade. Felizmente a lei mudou, e agora qualquer testemunha de violência doméstica pode denunciá-la às autoridades competentes. Mesmo com tal ambiente tóxico entre eles, tiveram um filho. Lembro-me que ao me cruzar com ela e o bebé, tentei brincar e fazer festinhas ao bebé, mas este mantinha um olhar sério e de estranheza, sem um mínimo sorriso, como o pai, quando, ao passar por ele no prédio, deitava-me um olhar vazio e nunca me devolveu o cumprimento.

Fui transplantada, e mais uma vez mudei de casa, pois nunca gostei de viver em Lisboa, e queria regressar ao Algarve, à sua brancura, às aguas temperadas das suas praias, à simpatia das pessoas. Dois anos depois, por estar constantemente a ter que ir ao Hospital em Lisboa, a mais de 300 km, devido a infeções urinárias recorrentes, vi-me obrigada a mudar novamente.

Fui viver para uma cidade na margem sul, num novo bairro em construção. A casa, ainda em acabamentos, conflitos constantes com o mestre de obras, uma vista avassaladora para o oceano, de arquitetura moderna, 2 enormes varandas e 2 casas de banho, ainda que minúsculas. Como diz o meu companheiro, depois de comer não se consegue lá entrar!

Passada uma semana, num centro comercial: vocês não estiveram agora ali na sapataria? – pergunta uma mulher, e nós – sim, ela – é que roubaram lá uma carteira…

Havia uma chiadeira infernal de alguns carros, que apetrechados com 2 ou 3 tubos de escape e modificados para chiar como carros formula 1, exibiam os decibéis e acrobacias, até de madrugada, aqui pela rua. Parece que a oficina era numa garagem, 2 prédios ao lado do meu, e a concentração da maralha, num café um pouco mais abaixo. Um dia um vizinho, reformado, que era muito crítico dos males que ocorriam na vizinhança, foi ao café reclamar do barulho inadmissível, que assustava e não deixava dormir. A rapariga do café, simplesmente o ameaçou de que, esses rapazes eram perigosos, e até viviam no bairro com pior fama desta cidade, por isso – não o aconselho a meter-se com eles…

À minha frente, nas traseiras, a uns 500 metros, há uma cadeia, numa zona elevada, e quase todas as madrugadas, durante anos, um carro ou dois, passava por lá a apitar ruidosamente, ao mesmo tempo que faziam “raters” e curvas a derrapar.

Uns meses depois, senti-me muito mal, com vómitos, diarreia, febre, até a água vomitava. Telefonei para o hospital em Lisboa onde tinha sido transplantada e onde deveria ser sempre tratada, segundo o protocolo, mas disseram-me que não era nenhum ET, e que fosse ao Hospital de cá. Passadas umas horas na urgência, e mais outras tantas lá dentro a ver os médicos passarem por mim nas calmas, fui chamada. Eu – sou transplantada renal, sinto-me muito maldisposta, vómitos, diarreia, febre e disse que comi qualquer coisa que não me lembro, ele – Então encheste a pança! ( a tratar-me por tu ) e passa-me uma receita para os vómitos e a diarreia. Voltei para casa e telefonei de novo para Lisboa, e agora, era de madrugada, disseram-me para ir urgentemente. Não fui recebida com simpatia, e na cama, sempre a tremer de febre, a enfermeira, impaciente, que não estava frio nem precisava de estar assim enervada. Diagnóstico: pielonefrite, infeção renal grave. Passei muito tempo internada e ia perdendo o rim. À noite, a minha companheira da cama ao lado, enfermeira ou ex-enfermeira, começou a tocar a campainha, nada, depois chamou, chamou, gritou, e eu também. Ouviam-se vozes, e nada. Então eu, com o suporte de soro atrás e bastante dificuldade em sair da cama, fui até ao corredor. Quando veio finalmente o médico, parece que tinha sido um problema grave de coração, levaram-na, não sei para onde.

No prédio eram só casais novos, com e sem filhos. Eu estava muito inchada dos corticoides, tinha mais 20 kg, estava irreconhecível. Fui obrigada a comprar roupa nova e larga, parecia que estava grávida, porque o rim é implantado na barriga e a medicação concentra gordura e agua no abdómen, pescoço, costas, cara e pernas. Após vários anos, as relações de vizinhança, eram mínimas, ainda que cordiais, fora um ou outro incidente. Quando, os corticoides, por fim, me foram retirados, fui voltando ao que era, emagrecendo quase 20 kg. Posso conjeturar o que a vizinhança poderia ter pensado, pois praticamente ninguém sabia que eu era transplantada : que estava grávida e ups… desapareceu a barriga, estranho, ou que fiz uma bruta dieta, etc.

Assim como hoje, não sabem que faço hemodiálise.

Tenho saudades da Ajuda, onde apesar da casa “amaldiçoada”, havia convivência e entreajuda.

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