Moçambique I

Aos 23 anos parti para Moçambique, num contrato de 2 anos, como cooperante, através de uma associação ONG, o CIDAC. Comecei a ler livros de autores africanos e a procurar inteirar-me da realidade em Moçambique. Pertencia à Associação de estudantes do IST (Instituto Superior Técnico de Lisboa) e era simpatizante da UDP, desde os 18 anos. Tinha desistido do curso de Engenharia civil no Técnico, quase no fim, por incompatibilidades várias, e deixei a família e amigos completamente incrédulos. Acredito que passei por um esgotamento sério e precisava mesmo dar uma escapadela, mudar de ares. Como tinha habilitações para ensinar no secundário, o meu contrato colocava-me como professora do 7º ano na Escola Josina Machel em Maputo; Ia ganhar 100 dólares e o resto em metical (moeda de Moçambique, sem valor de cambio), não me lembro do total ao certo.

Logo no avião, fiz amigos com outros cooperantes, o que foi ótimo. No meu contrato, constava o direito a habitação e o local de trabalho, em Maputo. Quando cheguei, hospedaram-me num hotel relativamente perto do Liceu, por falta de outro alojamento. A caminhada até ao liceu, fazia a corta mato, por um arvoredo, sempre a subir, aproveitando para tirar algumas fotos e deliciando-me com tudo o que via. O liceu era parecido aos nossos, de arquitetura austera e influência germânica. Apresentei-me, e correu tudo muito bem.

Dias depois, comecei a ouvir histórias de pessoas que não tinham o cartão de residente, e foram apanhados por uma patrulha, que os empurravam para uma carrinha, sendo depois despejados numa qualquer unidade de produção no interior, a trabalhos forçados, no meio de nada. Cartão de residente? Não me foi referido nada em lado nenhum. Mais tarde, também soube que me queriam enviar para o interior, onde decorria a guerrilha da Renamo… Mais bem informada, fui ao departamento de educação reclamar do meu contrato, e lá os convenci.

O restaurante do hotel parecia o Concelho das Nações, pessoas de várias nacionalidades, vindos da Áustria, Suíça, Peru, Chile, Canadá, Rússia, Cuba, Bulgária, Ucrânia, etc e um grupo de cooperantes portugueses da Quimigal. O relacionamento era demasiado fácil, independentemente dos motivos e ideologia, de cada um de nós, apesar de alguns, por racismo endócrino ou cegueira, se recusassem a ver o extraordinário momento histórico que estávamos a presenciar e a viver.

Do bar vinham gargalhadas e vozes amplificadas pela Laurentina, a cerveja moçambicana. A comida já começava a escassear, mas ainda constava alguma carne e peixe.

Perto do Hotel, havia um imenso armazém, o John Orr, sul africano, parecido ao do Chiado, com alguns artigos na montra. Entrei, alguns empregados conversavam distraídos, e ao olhar em redor, alem dos manequins vestidos, não havia praticamente nada à venda. Do lado direito, havia o Djambo, um restaurante com esplanada, onde só serviam uma espécie de chá ou aguachá e uns bolos da 2ª guerra.

Sim, houve imensos abusos da autoridade, esta sem preparação, analfabeta ( ao nível da baixa patente ) e com demasiado poder. Sim, a liberdade de expressão e até mesmo de comportamentos, vestuário, por exemplo, era aqui ou ali, reprimida. Corrupção era “mato “, candonga também. Num País novo, inserido num continente de antigas colónias, e no meio de uma guerra fria entre o papão do comunismo e o outro, o das grandes empresas que exploravam os recursos africanos, apoiando e fomentando a guerrilha, não era tarefa fácil, construir uma democracia, em guerra, com sabotagem e fracos recursos.

No liceu, o nosso grupo de matemática, dirigido pela Antónia, uma senhora eficiente, culta e responsável, funcionava perfeitamente. Ao sábado reuníamo-nos para preparar o programa semanal, com o conteúdo, objetivo e avaliação. Na sala dos professores, onde nos encontrávamos nos intervalos, um grupo cubano animava o ambiente, com as suas cores garridas, as suas canções e uns passos de dança convidativos. Fiz bons amigos e amigas.

O ensino da Matemática era rigoroso, com várias visitas relâmpago à minha sala, pela Antónia. A maioria dos meus alunos, vinham quilómetros a pé, com fome, e sem compreender ou falar bem o português, falando a língua ronga, entre eles, assim como não dispunham de material escolar, ou era escasso. Éramos obrigados a dar aulas extra de motivação politica, ou antes, justificar a politica da Frelimo, partido no poder. Então lembrei-me de os pôr a ler e a ensaiar o Principezinho, de Antoine de Saint-Exupéry, foi giro e interessante, mas não deu para criar um espetáculo, era mais para os entreter. Também estávamos obrigados ao içar da bandeira, a assistir a inúmeras reuniões de caráter escolar e politico, no Anfiteatro da escola, bem como a incorporar manifestações onde iria discursar o Presidente Samora Machel .

Na cidade não havia praticamente nada à venda, só no Bazar (Mercado), se encontravam alguns frutos, ou legumes por baixo da bancada, para quem pagasse mais ou em dólares. Nunca foi o meu caso, nunca alinhei na candonga. O povo tinha direito a um pacote (chamada ração) de bens, na cantina, por pessoa, que constava de carapau congelado, uma barra de sabão, que cheirava a peixe, uma barra de margarina de copra, que sabia a sabão, e não me lembro que mais.

Havia uma loja franca, nesse tempo, onde se pagava só em dólares, pequena, mas com uma variedade e qualidade maior. Eu, aí, só comprava alguns laticínios e chocolate, pouco mais. Estas lojas provocavam naturalmente um certa revolta nas pessoas, pois praticamente só os estrangeiros e cooperantes, podiam pagar em dólares.

Viam-se bichas à porta de lojas, às vezes só com os enormes cestos a marcar lugar, sempre com muita confusão. O que vendiam? Ninguém sabia ao certo, havia o boato que iriam vender qualquer coisa, nada garantido. Foi assim, que consegui comprar lápis, canetas, cadernos, etc. para dar aos meus alunos como prémio da resolução de longas equações, que publicava numa vitrina do corredor. Quem resolvesse bem recebia material. A seguir o problema era resolvido na aula e davam-se vivas aos vitoriosos. O material era muito escasso e difícil de arranjar, mas se conseguia mais, é claro que também distribuía pelos outros.

( A continuar … )

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