
7 Poemas de Luís Carlos Patraquim, poeta Moçambicano, para quem a “poesia é um estado contraditório de maravilhamento e de angústia”, um dos maiores da Língua Portuguesa.
Patraquim tem uma arte poética bem calibrada, capaz de escrever poemas curtos muito expressivos e quase expressionistas, verbalmente densos e imprevisíveis, com uma aposta imagística eficaz. São poemas a que podemos aceder apenas pela sua força verbal, estribada também numa repetição quase ritualística e num sentido rítmico notável.
(Pedro Mexia, em Novas formulações moçambicanas)
SAGA PARA ODE é preciso a distância para chegar onde o poema parte e se reparte no léxico verde do teu corpo com cinzas nocturnas e a madrugada nas mãos é preciso o lugar ainda que doa a emoção azul de sangrar por dentro com o pensamento na galáxia terna do olhar é preciso tudo como haver morte e flores na raiz ao vento dos braços inteiros que se deram por um nome uma ideia rubra nos lábios da liberdade é preciso ver musgo e alegria até às ilhargas da tua imagem garça a deslizar e sorver água na exuberância lustral dos teus seios é preciso a insurrecta solidão dalguns dias quando os arquipélagos de ser dizem barco e os teus passos espreitam e tímidos percorrem o horizonte coral do silêncio é preciso inventar-te porque existes enquanto os deuses adormecem nas páginas dos livros e o real é a infinita medida do canto como acender as luzes ao meio-dia e no mais sol das pétalas abertas verter a seiva a singrar na terra é preciso, meu amor, percorrer o tempo que nos deram suspensos onde estamos nas pálpebras do verão ("Monção", Edições 70 e Instituto Nacional do Livro e do Disco, 1980)

METAMORFOSE ao poeta José Craveirinha quando o medo puxava lustro à cidade eu era pequeno vê lá que nem casaco tinha nem sentimento no mundo grave ou lido Carlos Drummond de Andrade os jacarandás explodiam na alegria secreta de serem vagens e flores vermelhas e nem lustro de cera havia para que o soubesse na madeira da infância sobre a casa a Mãe não era ainda mulher e depois ficou Mãe e a mulher é que é a vagem e a terra então percebi a cor e a metáfora mas agora morto Adamastor tu viste-lhe o escorbuto e cantaste a madrugada das mambas cuspideiras nos trilhos do mato falemos dos casacos e do medo tamborilando o som e a fala sobre as planícies verdes e as espigas de bronze as rótulas já não tremulam não a sete de Março chama-se Junho desde um dia de há muito com meia dúzia de satanhocos moçambicanos todos poetas gizando a natureza e o chão no parnaso das balas falemos da madrugada e ao entardecer porque a monção chegou e o último insone povoa a noite de pensamentos grávidos num silêncio de rãs a tisana do desejo enquanto os tocadores de viola com que latas de rícinio e amendoim percutem outros tendões de memória e concreta a música é o brinquedo a roda e o sonho das crianças que olham os casacos e riem na despudorada inocência deste clarão matinal que tu clandestinamente plantaste AOS GRITOS ("Monção", Edições 70 e Instituto Nacional do Livro e do Disco, 1980)
AL-GHARB Pelo lagar da noite Estremecem as amendoeiras Corre no ar um tropel furtivo Seus panos de azeite E madeixas de sangue na corola Das mulheres Ela só lívida de azul e oiro Ave do mundo E a mãe diurna Boca a boca multiplicada. ( do livro "Pneuma", Caminho, 2009)

MUHÍPITI Para ti, com a ilha; a Rui Knopfli É onde deponho todas as armas. Uma palmeira harmonizando-nos o sonho. A sombra. Onde eu mesmo estou. Devagar e nu. Sobre as ondas eternas. Onde nunca fui e os anjos brincam aos barcos com livros como mãos. Onde comemos o acidulado último gomo das retóricas inúteis. É onde somos inúteis. Puros objectos naturais. Uma palmeira de missangas com o sol. Cantando. Onde na noite a Ilha recolhe todos os istmos e marulham as vozes. A estatuária nas virilhas. Golfando. Maconde não petrificada. É onde estou neste poema e nunca fui. O teu nome que grito a rir do nome. Do meu nome anulado. As vozes que te anunciam. E me perco. E estou nu. Devagar. Dentro do corpo. Uma palmeira abrindo-se para o silêncio. É onde sei a maxila que sangra. Onde os leopardos naufragam. O tempo. O cigarro a metralhar nos pulmões. A terra empapada. Golfando. Vermelha. É onde me confundo de ti. Um menino vergado ao peso de ser homem. Uma palmeira em azul humedecido sobre a fronte. A memória do infinito. O repouso que a si mesmo interroga. Ouve. A ronda e nenhum avião partiu. É onde estamos. Onde os pássaros são pássaros e tu dormes. E eu vagueio em soluços de sílabas. Onde Fujo deste poema. Uma palmeira de fogo. Na Ilha. Incendiando-nos o nome. (Do livro "Vinte e tal novas formulações e uma elegia carnívora", 1991)
Drummondiana Ao Gulamo Khan Já não elido, fiel amante da enunciação, o mundo durando. Carrego a minha no peito se abrindo — nenhuma dor maior — entre casuarinas que acenam da infância. meus versos se despiram. A noite, a inenarrável, a que espera sem iludida elisão rasgar este poema, sorri dos muros circum-navegando as casa. Como plantei muros! Como sou, sem pagamento, talvez um quark ou comburente de enzimas com alguma estória. Proteicas ideias se metamorfoseiam e a palavra escande e soçobra no silêncio.| José, Jacob, Macuácua, fazem um nome. Porém me perco. Não trago escada e nenhum anjo é maior do que o meu amor. Ela estremece. Em seu rosto acrescento a dissonante, vaga luz de lume, informulada poesia. Só ainda a funda música se estrutura, pura, líquida substância desde as veias, esgueirando-se de sílabas, verbos, lívidas vogais. Aqui, sem marketing para viagens lunares, componho esta planície infensa aos escrúpulos da morte. Uma árvores cortada, apodrece! Os sexos são só sexos não futuráveis mas como explodem os corpos, em sôfregos, misteriosos abraços de máscaras e caniço. Como de granito pesam as barrigas dos meninos! Escrevo, não obstante, um país solar, rouca a língua que soluça em sintagmas antigos. Verde foi o pinho das gáveas com ferros para as Américas. A memória é isto. Mas já não elido. Também tenho um quarto, nenhum S. Benedito. Algumas esporas se ferem animal e cavaleiro. Do mundo à máquina chegará com a máquina — este avião de trigo, sujeito e objeto sem interrogações. Só ainda o mar espreita o meu desejo ondulante na areia. A tua flor anuncio, orquestração, maravilha, com o meu sémen, o frágil milagre (“Vinte e tal Novas Formulações e uma Elegia Carnívora”, 1991)
ELEGIA DO NILO À Odete e ao Amioto Azul e branco e o deus crocodilo na margem Diante das ruínas de Karnak, como sobes, visto daqui, das águas obscuras Onde Ogum verteu suas lágrimas e cantou O sulco vindouro, persistente e duro caminhante De sul para norte sobre as areias, rasgando a volúvel pele Dos deuses. Reis e templos, em tuas margens ordenaram o mundo Entre cada ciclo solar, suspensos do fim; E louvo a cidade dos que partiram, o fluxo da pedra que ainda sustém a geometria do eterno emergindo da tua indiferença; Tu, que escondes os gatos imóveis e os sabes para sempre espíritos soltos, eriçados; e te deleitas, vendo-os na ronda dos desenhos enigmáticos, anichando-se junto aos Sarcófagos que extrapolam de Ti, como se o teu leito derramado Tivesse soerguido, da solidão granular, o perfil oblongo Da cabeça de Nefertiti e Te espojasses na beleza efémera Dos esponsais da Carne; Ó matéria perecível que as ânforas guardam, aguardam, Nós que perdemos o divino selo das libações inaugurais e salmodiamos, No medo litúrgico da palavra esquecida, o simulacro do Livro E a salvação dos mortos; O que subia deles, extirpadas as vísceras, iluminados pelo ouro e a água De que eras a substância! Desceram as noites e o desmundo bebeu nas tuas margens Enquanto Tu cantavas e era de ti o canto Moldando a forma, lacerando as cidades e erguendo-as, Com nossos pés descalços sobre a erva, acocorados E breves, uma inscrição de sangue diluindo-se Até ao mar. (Do livro "O osso côncavo e outros poemas", 2004)

Acorde absolutamente naif Já não doi, meu amor, a dor que em mim te feri tanto, o que vi, o que sou e canto, és tu a criar o dia na madrugada que me fugia ("Mariscando Luas", Texto: Luís Carlos Patraquim e Ana Mafalda Leite, Pinturas: Roberto Chichorro)
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