Metamorfose 2

É só uma narrativa, um avivar de memórias, nada mais.

O meu transplante renal de 21 anos (2)

Residia em Lisboa, desde que a família foi obrigada a mudar-se, porque no Algarve, onde vivíamos, não havia hemodiálise para a minha mãe, que era obrigada a deslocar-se a Sevilha, para fazer diálise peritoneal. Nunca me consegui adaptar ao ruído, ao frenesim automóvel, esperar uma eternidade para atravessar uma rua, pois semáforos era coisa que não existia na terrinha, e claro, eu não esperava, ia de corridinha em corridinha. A parte cultural e boémia, era, e é extraordinária, mas eu morria de saudades, daquele branco urbano, do azul, da ria Formosa, dos amigos, da fruta doce e única, de subir ás arvores, do desporto, de nadar nas aguas cálidas, da calma.

Transplante renal
BruceBlaus, CC BY-SA 4.0 , via Wikimedia Commons

Liberdade, não existia em hemodiálise. O tempo, as deslocações e a alimentação estavam muito limitadas.

Em menos de um ano, mudei-me para Lagos, no Algarve, terra cheia de história e ainda não devastada pelo turismo. O apartamento era um sonho, como eu imagino uma casa, cheia de arrumação, 2 casas de banho, 1 com janela, uma enorme varanda, onde se vislumbrava o mar, e uma varandinha na cozinha para a roupa, com um tanque de cimento, objeto em desuso, mas muito útil. A casa foi quase o custo da minha em Lisboa, onde morava, num T1, R/Ch, com grades na janela da sala por ser ao nível do chão exterior, que dava para um pequeno relvado.

Pouco depois, fiquei com febre e ardor urinário, tivemos que ir imediatamente no meu carro, para o hospital em Lisboa, a mais de 300 km. Naquele tempo, bastava ter febre e ficava-se internado, ainda num quarto só, com WC privado. Numa infeção urinária, só se sabe qual o agente infeccioso, após uma análise que dura 3 dias, até aí ou acertam logo no antibiótico, ou ficamos de rastos com febres altíssimas. Esta foi a minha 1ª infeção urinária, a que se seguiram uma média de 6, 7 por ano, às vezes mais.

Em 21 anos de transplante, dará mais de 100. Ainda há a contar outros problemas de vária ordem, como as infeções respiratórias recorrentes, que começavam em setembro e acabavam em dezembro ou janeiro, problemas relacionados com alergias, dermatologia e estava permanentemente constipada (seria alergia, provavelmente).

A situação começou a tornar-se insuportável, não só pelas infeções, como pelo custo do transporte, dificuldade de estacionamento, a expensas minhas, e a falta de hospedagem, a pedir a amigos, tendo mesmo sido obrigada a pernoitar uma vez num hotel. Quantas vezes, após fazer análises, de rotina ou por causa da infeção, não fui obrigada a repeti-las, até mais que uma vez, e eu morava a mais de 3 horas do hospital. E a cena das receitas, com letra de médico, em que invariavelmente, o farmacêutico em Lagos, não percebia patavina.

Havia ainda, a somar, ter de levantar, só no hospital, os medicamentos obrigatórios, de distribuição mensal, entregues à conta certa.

As longas bichas para Lisboa em jejum, que me provocavam fortes dor de estômago, devido à gastroenterite crónica, e as bichas confusas e conflituosas para as análises, havia quase sempre desentendimentos por causa do nº da senha e inclusive nas consultas, também devido ao não atendimento pelo telefone, que era recorrente, obrigou-me a mudar novamente de casa e de hospital, para um que fizesse transplantes, mais perto da nova casa.

As infeções continuaram, tinha a 1ª, logo a seguir tinha outra e às vezes mais uma terceira. Nos primeiros 4 anos, passeia os meus dias no hospital, ora internada, ora em consultas semanais, às vezes 2 ou 3 por semana, ou em tomas de antibióticos pela veia. Tinha sempre uma mala feita, para o caso.

Trabalhar? Ora façamos as contas; por cada infeção é quase uma semana de rastos, mais duas ou 3 de tratamento, o antibiótico provocava-me vários distúrbios, e obrigava-ma a ir a consultas de avaliação de 2 ou de 3 em 3 dias, o que dá no mínimo 15 a 20 dias inoperável, se forem 7 por ano equivale a 140 dias, adicionando os exames de rotina, outras consultas devido aos vários efeitos secundários dos imunossupressores. Há que referir ainda o distúrbio das menstruações, que eram quase ininterruptas, com dores enormes e um sangramento de litros e litros. Nem explicações de matemática, por exemplo, poderia dar, pois isto era completamente imprevisível.

Mesmo assim, por vezes, a arder em febre, ainda deu para construir uma página Web para um grupo coral, toda em html e css, só código, a qual mantive durante 4 anos, e que foi uma ótima experiência.

Horas intermináveis no hospital esperando, esperando, esperando, de madrugada ao fim da tarde, mesmo com febre, e não havia prioridade alguma. O que aliviava era ir para o hospital com o meu companheiro no nosso carro (o estacionamento era dificílimo, e quando passados uns anos, fizeram um estacionamento, era a 1 €/ h ), permitia uma escapadela depois das análises, por meia ou 1 hora até à praia, a 10 km dali, onde almoçávamos a correr.

Uma vez, sabendo que as consultas, normalmente só começariam a partir das 14, 15h, fui ao súper, comprar qualquer coisa para o almoço, mas o tipo à minha frente nunca mais se despachava. Cheguei ao hospital por volta das 12, 15h. Fui abordada pelas 2 enfermeiras das análises, com um ar carrancudo e policial – Então não sabe que esta médica vem mais cedo e é muito despachada? Ela esperou por si e foi-se embora, agora tem que ir para as urgências e pedir lá o antibiótico. Primeiro, nunca tinha apanhado essa médica nestas consultas, depois foi só um atraso de 15 min, e era só passar o antibiótico respetivo. Pois obrigava-me a ir para a urgência do hospital, quando era uma doente seguida por esse hospital! Depois de umas horas à espera, e apesar de eu ter explicado na triagem que já tinha feito as análises, queriam que eu repetisse tudo novamente, dado o protocolo, era de doidos. Por fim o meu companheiro foi à hemodiálise do hospital explicar ao medico de serviço, o sucedido, pedindo-lhe que fosse às urgências só para me passar a receita. E assim acabou esta história de arbitrariedade, autoritarismo, falta de humanidade e estupidez natural.

O mais incrível, é que se zangavam comigo, por estar mais uma vez internada. A culpa só podia ser minha: ou porque não tinha higiene, ou das relações sexuais ou outra coisa qualquer. Resolveram mandar-me para ginecologia nesse Hospital, fazer uma série de exames, para despistarem uma possível causa das infeções. Exames e mais exames, consultas e mais consultas. Nada.

O diretor de nefrologia, chegou a receitar-me 4 semanas de antibióticos, e quando a OMS aconselhou o máximo de 1 semana, ainda me receitava 2 a 3 semanas. Outro dos seus mandamentos recorrentes era ingerir 4 litros de água por dia! Lembra uma das torturas medievais… Eu só com 2 litros já me sentia mal, quanto mais 4 litros.

(Continua …)

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