Não é por vaidade ou pretensão. Até porque a memória deles já é muito escassa, mas alguma coisa deve ter ficado, espero, ainda que pouco visível… É preciso evocá-los e abri-los de vez em quando. Li muito, até começar a fazer hemodiálise, depois deixo quase tudo a meio, ou nem isso. Amo os livros, os bons livros, quase não dormia, por vezes, até chegar ao fim. Continuo a comprar, já não tenho mais espaço, agora sou mais uma colecionadora, do que leitora. Qualquer dia, vou recomeçar a ler e reler, já penso nisto há um tempo… Lembrei-me de os expor aqui, para me obrigar a afagá-los de novo e talvez ler um pouco, e também para compartilhar, com um pequeno excerto, ou poema, deixando ao interesse e curiosidade de alguém que por aqui passe. Vão ser 5 livros aleatórios por post.

1 – António Gedeão – POESIAS COMPLETAS (1956-1967), Coleção poetas de hoje, Portugália
CALÇADA DE CARRICHE
Luísa sobe, sobe a calçada sobe e não pode que vai cansada. Sobe Luísa, sobe que sobe sobe a calçada. Saiu de casa de madrugada; regressa a casa é já noite fechada. Na mão grosseira, de pele queimada, leva a lancheira desengonçada. Anda, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Luísa é nova, desenxovalhada, tem perna gorda, bem torneada. Ferve-lhe o sangue de afogueada; saltam-lhe os peitos na caminhada. Anda, Luísa. Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Passam magalas, rapaziada, palpam-lhe as coxas não dá por nada. Anda, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada.
Chegou a casa não disse nada. Pegou na filha, deu-lhe a mamada; bebeu a sopa numa golada; lavou a loiça, varreu a escada; deu jeito à casa desarranjada; coseu a roupa já remendada; despiu-se à pressa, desinteressada; caiu na cama de uma assentada; chegou o homem, viu-a deitada; serviu-se dela, não deu por nada. Anda, Luísa. Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Na manhã débil, sem alvorada, salta da cama, desembestada; puxa da filha, dá-lhe a mamada; veste-se à pressa, desengonçada; anda, ciranda, desaustinada; range o soalho a cada passada, salta para a rua, corre açodada, galga o passeio, desce o passeio, desce a calçada,
chega à oficina à hora marcada, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga, toca a sineta na hora aprazada, corre à cantina, volta à toada, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga. Regressa a casa é já noite fechada. Luísa arqueja pela calçada. Anda, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada, sobe que sobe, sobe a calçada, sobe que sobe, sobe a calçada. Anda, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada

2 – Umberto Eco – Baudolino (2000), editado pela Difel
Extraído da contracapa
“Na zona do baixo Piemonte onde, anos depois, virá a surgir Alexandria, Baudolino, um pequeno camponês fantasioso e aldrabão, conquista o imperador Frederico Barbarroxa e torna-se seu filho adoptivo. Baudolino cresce e anos depois, Frederico levado pela invenção do protagonista, com o pretexto de uma cruzada, põe-se a caminho para devolver a Prestes João a relíquia mais preciosa da cristandade. Morrerá durante a viagem , em circunstâncias misteriosas que só Baudolino nos desvenda…”
” Baudolino constitui um fresco colorido da Idade Média e um magnífico divertimento” Diário de Notícias
” Umberto Eco regressa ao terreno que lhe deu fama e provérbio junto do grande público: o romance histórico. Baudolino é um elogio do imaginário, onde se confundem ficção e realidade.” Diário Económico

3 – A GUERRA E OS HOMENS – Mikhail Cholokhov, Vitor Hugo, Konstantin Simonov, Ernest Hemingway, Boris Gorbatov, William Faulkner e Eric Jens Petersen – Editorial Inova/Porto
Contracapa :
” De depoimento directo e simples do soldado ao monstro sagrado da literatura – Vitor Hugo – este volume brilha diante do leitor como um arco-íris de sentimentos e ideais humanos que a guerra desperta. A prosa direta, o diálogo simples e riquíssimo de Ernest Hemingway; a profunda atracção de Cholokhov pelo seu povo, pelo soldado das trincheiras, na verdade dos seus terrores e das suas certezas, retratado pelo estilo fulgurante do grande mestre de «O Don tranquilo»; a densa problemática do indivíduo numa página notável de um dos maiores romancistas americanos – William Faulkner; a dramática denúncia do grande logro da propaganda de guerra nazi, pelo escritor norueguês, Eric Jens Petersen; o ardor patriótico de «Paramon Sansonovitch» e a sensibilidade poética de «Moscovo», de Konstantin Simonov, a literatura empenhada de Gorbatov, revelam-nos, a grandes traços, a riqueza literária e a densidade humana da antologia de contos A GUERRA E OS HOMENS. “

4 – John Steinbeck – AS VINHAS DA IRA, Edição «Livros do Brasil» Lisboa
“Eis aqui um dos grandes romances de John Steinbeck, o mais discutido, o mais lido, e talvez o mais célebre escritor norte-americano do nosso tempo. A celeuma que este livro provocou nos Estados Unidos não impediu que lhe concedessem o mais importante prémio literário que existe nesse país: o Prémio Pulitzer. De que se trata a obra famosa? Do êxodo de uma família de lavradores que, vendo-se reduzida à miséria por uma tempestade de areia em Oklahoma, resolve emigrar para a Califórnia. A luta que todos os membros da família sustentam na sua exaustiva jornada contra os elementos e os homens e, até, contra o próprio meio de transporte, a coragem de que dão provas, a generosidade de alma que afirmam, a humaníssima capacidade de, apesar de tudo, fraternizarem uns com os outros e com os seus semelhantes trazem um sopro de epopeia, raro, mesmo hoje, em livros de idêntica ou parecida inspiração. O fundo, a tendência social de As Vinhas da Ira, a piedade pelo sofrimento alheio, e o protesto, a revolta perante as injustiças do mundo, que assinalam o romance de Steinbeck, conferem-lhe nobreza inequívoca…” excerto da orelha da capa.

5 – José Gomes Ferreira – Relatório de Sombras ou A Memória das Palavras II, Morais Editores, 1980
“E porque não minto / sou um labirinto”
PRÓLOGO
DAS 3 LUAS SINISTRAS
“Um moralista amigo, que tem gasto a vida a tentar compreender o que existe de negativo e de nocturno no carácter do homem literato português (o lado solar, esse parece-me tão evidente e tão exagerado no dia a dia dos jornais e dos discursos politicos que não vale a pena evocá-lo agora), confiou-me há dias no cantinho do café (…)
Acredita, os três piores malefícios do escritor português (só do português ou do mamífero humano em geral?) são: a inveja, a megalomania e a vaidade. (…)
Talvez tenhas razão. Mas deixa-me pensar primeiro no assunto. Dá-me um prazo. (…)
Nessa mesma tarde, sussurros de conversas semiouvidas nos autocarros, uma leitura menos rápida dos jornais, a vizinha do Metro a gabar-se para a companheira: «tenho os olhos mais bonitos da família», os literatos nos alçapões de si mesmos a esconderem este sonho absurdo: «não percebo porque não me propõem para o premio Nobel» cada qual a julgar-se o melhor escritor, o melhor eletricista, , o melhor carpinteiro do mundo. (…) Mas o pior foi quando me deitei e, como todas as noites, me pus a mirar no espelho da treva os defeitos e as virtudes manifestadas durante o dia. (…)
– Hoje tiveste algum momento de inveja, meu rapaz? Não mintas. Lembra-te de que estás diante da Escuridão Enorme e responde com a verdade perfeita.
– Sim, tive (…)
– Foste vaidoso?
– Ó Senhor dos Abismos! Se fui. As vezes que contei a valentia exemplar com que enfrentei a operação no Hospital. (…)
– E também és megalómano, meu rapaz? Vá, confessa.
– Sim, sou. Embora no abismo mais à superfície da pele, me julgue digno de todas as coroas de louro do universo e, quando não falam de mim, esmago a sombra no chão à patada. Além disto, os meus versos deviam estar traduzidos em todas as línguas do mundo. (…)”