O assassínio da vida

Não, não estou numa fase negra, nem de luto, só se for pelo SNS (serviço nacional de saúde), nem penso em suicídio, só quando me massacram acima dos limites, lá na diálise, o que só dura uma hora ou duas, depois passa.
É que, deparei-me com o Bernardo Sassetti, a tocar a Noite, do filme Alice, filme multipremiado, que nunca vi, no You Tube, e fiquei tão triste. Pensamos normalmente, nestes casos, o que não teriam feito mais, o que perdemos.

«ele não tinha perfil para deixar tudo para trás e não paralisava perante problemas», defende Mário Laginha, recusando esta última hipótese (suicídio). «cada pessoa pensa o que quiser, mas eu sou dos que sabem que ele adorava correr riscos e era muito homem para esticar a corda».(do SOL)


E inevitavelmente, pensei na minha querida amiga que se suicidou, devido a uma depressão profunda, recorrente e hereditária. E a nossa impotência, o nosso esforço e dedicação, são sempre totalmente ineficazes.
Também pensei no director da Associação dos doentes renais de Setúbal, que não resistiu ao sofrimento, uma pessoa excecional.
Fui à procura de poemas sobre a morte e o suicídio, na Net, e foi interessantíssimo.

Desde o Álvaro de Campos, revoltado por o Mário de Sá Carneiro, se ter suicidado, ter escrito aquele poema da inutilidade do feito, até uma carta de Cecília Meireles após o suicídio do marido, Fernando Correia Dias, completamente devastada, depois de ter dado tudo por ele, adivinhando o seu fim, e de não ter conseguido salvá-lo.
Quantos nomes maiores, da nossa cultura :
Florbela Espanca, Antero de Quental, Mario de Sá Carneiro, Santa-Rita Pintor, Francisco Álvares de Nóbrega, Camilo Castelo Branco, Soares dos Reis, Trindade Coelho, Manuel Laranjeira, entre outros.

Os motivos? Não é com certeza pela nacionalidade, pois também é recorrente em outros países, mas julgo que a intensa e solitária criatividade e saber, seus conflitos filosóficos e morais, associado a dramas pessoais, incapacidades, doenças terminais e problemas do foro psiquiátrico, adensam e precipitam para o fim.

Acredito, que com os avanços da investigação a nível neuronal, genética, etc, a depressão, e vários tipos de patologias mentais, serão tratadas, e a vida será plenamente vivida e agraciada.

Ia citar a lindíssima canção, “Gracias a la vida”, de Violeta Parra, mas … tem um contra, também ela se … de qualquer modo vou transcrevê-la.

Gracias a la vida, de Violeta Parra Sandoval

Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Me dio dos luceros que, cuando los abro,
perfecto distingo lo negro del blanco,
y en el alto cielo su fondo estrellado,
y en las multitudes el hombre que yo amo.

Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Me ha dado el oído que, en todo su ancho,
graba noche y día grillos y canarios,
martillos, turbinas, ladridos, chubascos,
y la voz tan tierna de mi bien amado.

Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Me ha dado el sonido y el abecedario,
con él las palabras que pienso y declaro:
madre, amigo, hermano, y luz alumbrando
la ruta del alma del que estoy amando.

Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Me ha dado la marcha de mis pies cansados;
con ellos anduve ciudades y charcos,
playas y desiertos, montañas y llanos,
y la casa tuya, tu calle y tu patio.

Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Me dio el corazón que agita su marco
cuando miro el fruto del cerebro humano,
cuando miro el bueno tan lejos del malo,
cuando miro el fondo de tus ojos claros.

Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Me ha dado la risa y me ha dado el llanto.
Así yo distingo dicha de quebranto,
los dos materiales que forman mi canto
y el canto de ustedes que es el mismo canto,
y el canto de todos, que es mi propio canto.

Gracias a la vida que me ha dado tanto.
em Cancioneros.com

Álvaro de Campos, em “Poemas”, dedicado a Mário de Sá Carneiro

Se te Queres Matar
Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por atores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fím?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência! ...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?

Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjetividade objetiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente,
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células noturnamente conscientes
Pela noturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atômica das coisas,
Pelas paredes turbihonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...

O Suicida

Não restará na noite uma só estrela.
Não restará a noite.
Morrerei e comigo irá a soma
Do intolerável universo.
Apagarei medalhas e pirâmides,
Os continentes e os rostos.
Apagarei a acumulação do passado.
Farei da história pó, do pó o pó.
Estou a olhar o último poente.
Oiço o último pássaro.
Lego o nada a ninguém.

Jorge Luis Borges, em “A Rosa Profunda”

A Canção do Suicida

Só mais um momento.
Que voltem sempre a cortar-me
a corda.
Há pouco estava tão preparado
e havia já um pouco de eternidade
nas minhas entranhas.

Estendem-me a colher,
esta colher de vida.
Não, quero e já não quero,
deixem-me vomitar sobre mim.

Sei que a vida é boa
e que o mundo é uma taça cheia,
mas a mim não me chega ao sangue,
a mim só me sobe à cabeça.

Aos outros alimenta-os, a mim põe-me doente;
compreendei que há quem a despreze.
Durante pelo menos mil anos
preciso agora fazer dieta.

Rainer Maria Rilke, em "O Livro das Imagens"
Tradução de Maria João Costa Pereira

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