“Pelo sonho é que vamos”




O Poeta da Serra da Arrábida, onde vivia, guardião da sua Serra-Mãe, ambientalista fervoroso, esteve na origem, da Liga para a Protecção da Natureza, em 1948, a primeira associação ecologista portuguesa.
Apesar da morte, estar presente, ainda que não de auto comiseração, devido à doença que o levaria muito novo, Sebastião da Gama, exaltava a vida e a natureza, com um otimismo e alegria sinceros, das coisas simples e belas.
Mini clip da praia da saúde, em Setúbal com a Arrábida ao fundo.
MANHÃ NO SADO (em Campo Aberto -Viagem) Brancas, as velas eram sonhos que o rio sonhava alto. Meninas debruçadas em janelas, via-se, à flor azul das águas, as gaivotas. E a Manhã quieta (sorrindo, linda, vinha vindo a [Primavera...) punha os pés melindrosos entre as conchas. Derivavam .jardins imponderáveis dos seus passos de ninfa e tremiam as conchas de súbitas carícias. Longe era tudo: o medo dos naufrágios, as angústias dos homens, o desgosto, os esgares das tragédias e comédias de cada um, os lutos, as derrotas. Longe a paz verdadeira das crianças e a teimosia heróica dos que esperam. Ah, à beira-rio, de olhos só para o rio, de ouvidos surdos ao que não é a música das águas, um sossego alegórico persiste. Nem o arfar das velas o perturba. Nem o rumor dos seios capitosos da Manhã, que nas águas desabrocham e flutuam, doentes de perfume. Nem a presença humana do Poeta — sombra que a pouco e pouco se ilumina e se dilui, anónima, na aragem...
CANÇÃO DO VENTO NORTE (1947) Vento Norte !, Vento Norte ! Não quero já, noutro berço que o Vento Norte ! O que estilhaça os navios e enche de pranto os rosais ; me traz notícias de crimes e faz tremer como vimes os meus lábios ... Não mais a vida pacata, Sentadinha, sentadinha, que não é vida nem é nada . Que me doa, mas que eu viva ! Que importa os gritos que der, se bem maiores os deu minha Mãe, pra me parir ? Vem-me embalar, Vento Norte !, nem que me quebres o berço. Vamos os dois por i fora pregar partidas aos lagos. Minhas horas descansadas, minhas horas morrinhentas, só vividas no mostrador do relógio, eu vos renego e acuso por crime de alta traição contra a minha mocidade. Agora que venha o Vento apagar vossa lembrança ! O vento Norte ... O que desfolha os rosais e põe barcos em frangalhos e rasga nossos cabelos como a bandeira de Guerra, mas varre as nuvens para a gente ver o Sol e segreda a meus ouvidos coisas de tanta verdade que já não creio que o Vento não seja da minha idade ...
SERRA-MÃE (1ª Obra, 1945) O agoiro do bufu, nos penhascos, foi o sinal da Paz. O Silencio baixou do Céu, Mesclou as cores todas o negrume, o folhado calou o seu perfume, e a Serra adormeceu. Depois, apenas uma linha escura e a nódoa branca de uma fonte amiga; a fazer-me sedento, de a ouvir, a água, num murmúrio de cantiga, ajuda a Serra a dormir. O murmúrio é a alma de um Poeta que se finou e anda agora à procura, pela Serra, da verdade dos sonhos que na Terra nunca alcançou. E outros murmúrios de água escuto, mais além: os Poetas embalam sua Mãe, que um dia os embalou. Na noite calma, a poesia da Serra adormecida vem recolher-se em mim. E o combate magnífico da Cor, que eu vi de dia; e o casamento do cheiro a maresia com o perfume agreste do alecrim; e os gritos mudos das rochas sequiosas que o Sol castiga -passam a dar-se em mim. E todo eu me alevanto e todo eu ardo. Chego a julgar a Arrábida por Mãe, quando não serei mais que seu bastardo. A minha alma sente-se beijada pela poalha da hora do Sol-pôr; sente-se a vida das seivas e a alegria que faz cantar as aves na quebrada; e a solidão augusta que me fala pela mata cerrada, aonde o ar no peito se me cala, desceu da Serra e concentrou-se em mim.
Hora Vermelha (1951)
Por que vieste, pensamento?
Já me bastava o Mar violento,
Já me bastava o Sol que ardia…
P’los meus sentidos escorria
não sei lá bem que seiva forte
que a carne toda me deixava
qual uma flor ou uma lava
num riso aberto contra a Morte.
Já me bastava tudo isto.
Mas tu vieste, pensamento,
e vieste duro, turbulento.
Vieste com formas e com sangue:
erectos seios de mulher,
as carnes róseas como frutos.
Boca rasgada num pedido
a que se quer e se não quer
dizer que não.
Os braços longos estendidos.
A mão em concha sobre o sexo
que nem a Vénus de Camões.
Aí!, pensamento,
deixa-me a calma da Poesia!
Aqui na praia só com ela,
virgem castíssima, sincera!…
Sua mão branca saberia
chamar cordeiro ao Mar violento,
Pôr meigo, meigo, o Sol que ardia.
Mas tu vieste, pensamento.
Tua nudez, que me obsidia,
logo, subtil, encheu de alento
velhos desejos recalcados,
beijos mordidos
antes de os ver a luz do Dia.
Vai-te depressa, pensamento!
Deixa-me a calma da Poesia.
Fique em minh’alma o só perfume
da cerca alegre de um convento.
Os meus sentidos embalados
numa suave melodia.
(Ah!, não nos quero desgrenhados
como quem volta de uma orgia).
E então meus lábios mais serenos
do que se orassem sobre um berço,
sorrindo à Vida,
sorrindo à Morte.
Ah!, não nos quero assim grosseiros,
ébrios, torcidos,
como depois de um vinho forte.
PELO SONHO É QUE VAMOS (1953)
Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos,
basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria
ao que desconhecemos
e ao que é do dia-a-dia.
Chegamos? Não chegamos?
─ Partimos. Vamos. Somos.
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