Manuel da Fonseca (1911-1993), nascido em Santiago do Cacém, foi poeta, contista, romancista, cronista e activista político, tendo colaborado em diversas publicações.

Na obra de Manuel da Fonseca, considerado um dos vultos do neorrealismo literário português, o Alentejo é um lugar de crucial importância no seu universo, como vemos pela imagem que o autor projecta, assaz singular, íntima, profusamente descritiva, da província durante o Estado Novo, mais precisamente, do Baixo Alentejo (segundo a antiga unidade de referência geográfica).
Comunidadeculturaearte.com
DOMINGO Quando chega domingo, faço tenção de todas as coisas mais belas que um homem pode fazer na vida. Há quem vá para o pé das águas deitar-se na areia e não pensar... E há os que vão para o campo cheios de grandes sentimentos bucólicos porque leram, de véspera, no boletim do jornal: «Bom tempo para amanhã»... Mas uma maioria sai para as ruas pedindo, pois nesse dia aqueles que passeiam com a mulher e os filhos são mais generosos. Um rapaz que era pintor não disse nada a ninguém e escolheu o domingo para se matar. Ainda hoje a família e os amigos andam pensando porque seria. Só não relacionam que se matou num domingo! Mariazinha Santos (aquela que um dia se quis entregar, que era o que a família desejava, para que o seu futuro ficasse resolvido), Mariazinha Santos quando chega domingo, vai com uma amiga para o cinema. Deixa que lhe apalpem as coxas e abafa os suspiros mordendo um lencinho que sua mãe lhe bordou, quando ela era ainda muito menina... Para eu contar isto é que conheço todas as horas que fazem um dia de domingo! À hora negra das noites frias e longas sei duma hora numa escada onde uma velha põe sua neta e vem sorrir aos homens que passam! E a costureirinha mais honesta que eu namorei vendeu a virgindade num domingo ‑ porque é o dia em que estão fechadas as casas de penhores! Há mais amargura nisto que em toda a História das Guerras. Partindo deste princípio, que os economistas desconhecem ou fingem desconhecer, eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo. E esta era uma das coisas mais belas que um homem podia fazer na vida! Então, todas as raparigas amariam no tempo próprio e tudo seria natural sem mendigos nas ruas nem casas de penhores... Penso isto, e vou a grandes passadas... E um domingo parei numa praça e pus-me a gritar o que sentia, mas todos acharam estranhos os meus modo e estranha a minha voz... Mariazinha Santos foi para o cinema e outras menearam as ancas ‑ ao sol como num ritual consagrado a um deus! ‑ até chegar o homem bem-amado entre todos com uma nota de cem na mão estendida... Venha a miséria maior que todas secar o último restolho de moral que em mim resta; e eu fique rude como o deserto e agreste como o recorte das altas serras; venha a ânsia do peito para os braços! E vou a grandes passadas como um louco maior que a sua loucura... O rapaz que era pintor aconchegou-se sobre a linha férrea para que a morte o desfigurasse e o seu corpo anónimo fosse uma bandeira trágica de revolta contra o mundo. Mas como o rosto lhe estava intacto vai a família ao necrotério e ficou aterrada! Conheci-o numa noite de bebedeira e acho tudo aquilo natural. A costureirinha que eu namorei deixava-se ir para as ruas escuras sem nenhum receio. Uma vez que chovia até entrámos numa escada. Somente sequer um beijo trocámos... E isto porque no momento próprio olhava para mim com um propósito tão sereno que eu, que dela só desejava o corpo bom feito, me punha a observar o outro aspecto do seu rosto, que era aquela serenidade de pessoa que tem a vida cheia e inteira. No entanto, ela nunca pôs obstáculo que nesse instante as minhas mãos segurassem as suas. Hoje encontramo-nos aí pelos cafés... (ela está sempre com sujeitos decentes) e quando nos fitamos nos olhos, bem lá no fundo dos olhos, eu que sou homem nascido para fazer as coisas mais heróicas da vida viro a cabeça para o lado e digo: ‑ rapaz, traz-me um café... O meu amigo, que era pintor, contou-me numa noite de bebedeira: ‑ Olha, quando chega domingo, não há nada melhor que ir para o futebol... E como os olhos se me enevoassem de água, continuou com uma voz que deve ser igual à que se ouve nos sonhos: ‑ ... no entanto, conheço um homem que ia para a beira do rio e passava um dia inteirinho de domingo segurando uma cana donde caia um fio para a água... ... um dia pescou um peixe, e nunca mais lá voltou... O pior é pensar: que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre como se fosse uma festa?... ‑ O rapaz que era pintor sabia uma ciência rara, tão rara e certa e maravilhosa que deslumbrado se matou. Pago o café e saio a grandes passadas. Hoje e depois e todos os dias que vierem, amo a vida mais e mais que aqueles que sabem que vão morrer amanhã! Mariazinha Santos, que vá para o cinema morder o lencinho que sua mãe lhe bordou... E os senhores serenos, acompanhados da mulher e dos filhos, que parem ao sol e joguem um tostão na mão dos pedintes... E a menina das horas longas e frias continue pela mão de sua avó... E tu, que só andas com cavalheiros decentes, ó costureirinha honesta que eu namorei um dia, fita-me bem no fundo dos olhos, fita-me bem no fundo dos olhos! Então, virá a miséria maior que todas secar o último restolho de moral que em mim resta; e eu ficarei rude como o deserto e agreste como o recorte das altas serras: e virá a ânsia do peito para os braços! … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … Domingo que vem, eu vou fazer as coisas mais belas que um homem pode fazer na vida! Manuel da Fonseca, Rosa dos Ventos, 1940