Dois Poemas – Tatiana Faia

Tatiana Faia, portuguesa (1986), é doutorada em Estudos Clássicos, Literatura Grega Antiga, com uma tese sobre a Ilíada de Homero. Com José Pedro Moreira e André Simões editou a revista Ítaca: Cadernos de Ideias, Textos & Imagens (2009-2011). É uma das editoras do projecto Enfermaria 6 e autora de quatro livros de poemas: Lugano (2011), teatro de rua (2013), Um quarto em Atenas (2018) e Leopardo e Abstracção (2019) e de um livro de contos, São Luís dos Portugueses em Chamas (2016). Um Quarto em Atenas venceu o Prémio PEN Clube de Poesia em 2019. Vive e trabalha em Oxford.

René Magritte (detail) The Son of Man, 1964. Oil on canvas (1898-1967) Private collection. SFMOMA, fonte rocor, flickr.com
o mistério dos homens adormecidos

alguns jazem no plaino abandonado

que a morna brisa aquece

no bolso direito das calças a cigarrilha breve

o peito exposto ao ar os braços cruzados

debaixo da nuca

na vulnerabilidade de um gesto

para lá da farda regimental

do fato e gravata de todos os dias

e depois da poeira sobre os sapatos

a respiração tão regular do corpo

é de repente um acidente da sorte

uma dádiva improvável e oportuna

trazendo de volta a desaceleração do quotidiano

 

alguns nem estão à espera de ver o mundo arder

cumprem os dias como se tudo

o que alguma vez lhes tivesse sido dado viver

fosse um dia só

e apenas uma só versão desse dia existisse

a profundidade existe apenas

quando jazem sem cuidado

ao comprido num sofá num vigésimo segundo andar

num apartamento de vinte cinco metros quadrados

rodeados por um marulhar de barulhos

por todos os lados e sem que o nada os acosse

um leve sorriso cai sobre os lábios

e um cigarro arde no cinzeiro

enquanto eles deslizam pelo aqueronte do sono adentro

sem espadas e sem escudos que lancem a agulha

da resistência ao desconhecido

noite adentro a confiança ou uma promessa

de amantes pode ser algo como isto

 

alguns regam as plantas cinco minutos antes

e desfazem os nós dos atacadores

e tiram ordeiramente os sapatos

e reconhecem até mesmo a proximidade da morte

mesmo agora enquanto comem uma refeição enlatada

 

enquanto me dou conta de que alguns são

ainda até atléticos e musculares e necessários

e mesmo a sua extrema necessidade

alimenta o desejo de todas as coisas

a precisão de alguns instantes quando

rapazes jogam à bola debaixo dos olhares de leões

e as cidades são imponentes e inteligentes e sem perdão

como os aborrecidamente espertos quartetos de mozart

 

alguns fecham os olhos e inadvertidamente

deitam abaixo a última parede do mito

aquela que postulava que a inteligência que permite

ler os dias é uma espera posta à destruição

 

adormecendo alguns entrelaçam as mãos sobre o peito

como guerreiros medievais sepultados em túmulos de pedra

no coração das cidades

e é estelar o seu abandono como um fragmento

de vidro que se ilumina de repente na escuridão do ar

e mergulhados profundamente no sono

intuem a profundidade do azul na obscuridade da noite

as chamas que marcam as amuradas da noite

as coordenadas do sal na pele

para lá das horas em que escreveram

linhas em que declararam conhecer bem o sal

que se cola à pele vindo das orlas de certas praias no atlântico

 

e no entanto alguns persistem e aceleram

para lá do sono em carros que cortam pela noite

demasiado cansados e um pouco decadentes

na fronteira com a extrema incoerência

um pouco para lá do cansaço

para lá do facilmente evidente

Nápoles, 8 de Outubro de 2017

 

 

alguns sons antes da manhã

às vezes harmonia e desarmonia ganham fôlego

para se somarem em algo

que parece raro, definitivo, surpreendente

um cavalo ferido em contraluz

nos campos de nevoeiro

ergue-se finalmente diante dos olhos

 

não exactamente música

mas um pedaço da minha vida

cifrado no estrépito de uma voz

que desce em ângulos

de ironia e esperança

alegria e indiferença

 

e rebate na luz dos olhos baixos

acendendo-se apagando-se

 

trouxe-me aqui uma memória

que insistiria em atravessar um continente

por poucas horas, uma garrafa de vinho

a vitalidade de uma certa

quantidade de conversa fiada

numa sucessão de acontecimentos

que não conjuram exactamente uma ordem

embora tu ao contrário de mim

acredites que há no universo uma ordem

eu regressei mesmo pela extrema necessidade

de um pouco de caos

 

é preciso queimar este tempo

antes de entrarmos de novo na realidade

diz cinco minutos cinco horas

 

ou talvez a mais adequada forma fossem

as coisas mais imediatas mais fáceis

a espessura de um licor escuro e amargo

num copo minúsculo e raso

ou de uma chávena cheia de café

de manhã, no estômago vazio

os meus ouvidos atentíssimos

plantados entre os leões

assaltados pelo tilintar de colheres em chávenas

facas e garfos contra os pratos

famílias inteiras rindo

e enchendo as mesas para jantar

enquanto sobre mim se abate

a absurda ideia de que nem sequer

ouvi os teus passos afastarem-se

que devemos ser agora um pouco

menos misteriosos mas mais reais

em algum ponto da cidade

os sinos da catedral maceram o ar

e aquele martelo que ouvi

trabalhar ao longe

os golpes desferidos a intervalos regulares

sobre a pedra

foi-se silenciando

mas vai daqui a algumas horas ou dias ou meses

acertar-me em cheio no centro do torso

esmagar-me o peito no mais absurdo

tropeço de ternura

 

todo o vidro desta atmosfera é febril

tilinta nas conversas

que se vão distanciando

mas não há mais nenhum rosto

para além do teu

e não há já ninguém

não resta quase resíduo nenhum

de tudo o que existe e é real

a estas horas toda a cidade está vazia

 

daqui tu observas já

os pontos da cronologia

a que se hão-de agarrar

as garras e os ganchos desta madrugada

a fixação destes instantes

na história da vida de alguém

 

não sei como é que

à medida que o tempo acelera

à minha frente só a promessa

do incêndio da manhã

ainda a algumas horas de distância

é evidente

 

o girar cada vez mais rápido

de cada vez mais e mais cor

colando-se a cada minuto

de um carro que acelera a toda velocidade

para romper a primeira barreira da escuridão

quando ainda não percebo ao certo

se é noite ou manhã

e finalmente a abertura definitiva

um archote deflagrando entre dois instantes

precipitando-se da mão

de um anjo muito com os copos

e muito em desequilíbrio

que contra a harmonia do mais celeste dos coros

encena por apoteose

a tarefa de se atirar do alto da primeira arcada do céu

trazendo com ele fiapos de penas, confusão e desarmonia

como uma teimosa diva no último acto de uma ópera

de olhos fechados, de braços cruzados sobre o peito

para um tráfego de rolls royces lá em baixo

 

mas é ainda mais cómica a evidência

agora indisputada:

através do nevoeiro

despenhando-se contra os faróis:

a noite transformada em manhã

Roma, 19 de Dezembro de 2017

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