Tatiana Faia, portuguesa (1986), é doutorada em Estudos Clássicos, Literatura Grega Antiga, com uma tese sobre a Ilíada de Homero. Com José Pedro Moreira e André Simões editou a revista Ítaca: Cadernos de Ideias, Textos & Imagens (2009-2011). É uma das editoras do projecto Enfermaria 6 e autora de quatro livros de poemas: Lugano (2011), teatro de rua (2013), Um quarto em Atenas (2018) e Leopardo e Abstracção (2019) e de um livro de contos, São Luís dos Portugueses em Chamas (2016). Um Quarto em Atenas venceu o Prémio PEN Clube de Poesia em 2019. Vive e trabalha em Oxford.

o mistério dos homens adormecidos
alguns jazem no plaino abandonado
que a morna brisa aquece
no bolso direito das calças a cigarrilha breve
o peito exposto ao ar os braços cruzados
debaixo da nuca
na vulnerabilidade de um gesto
para lá da farda regimental
do fato e gravata de todos os dias
e depois da poeira sobre os sapatos
a respiração tão regular do corpo
é de repente um acidente da sorte
uma dádiva improvável e oportuna
trazendo de volta a desaceleração do quotidiano
alguns nem estão à espera de ver o mundo arder
cumprem os dias como se tudo
o que alguma vez lhes tivesse sido dado viver
fosse um dia só
e apenas uma só versão desse dia existisse
a profundidade existe apenas
quando jazem sem cuidado
ao comprido num sofá num vigésimo segundo andar
num apartamento de vinte cinco metros quadrados
rodeados por um marulhar de barulhos
por todos os lados e sem que o nada os acosse
um leve sorriso cai sobre os lábios
e um cigarro arde no cinzeiro
enquanto eles deslizam pelo aqueronte do sono adentro
sem espadas e sem escudos que lancem a agulha
da resistência ao desconhecido
noite adentro a confiança ou uma promessa
de amantes pode ser algo como isto
alguns regam as plantas cinco minutos antes
e desfazem os nós dos atacadores
e tiram ordeiramente os sapatos
e reconhecem até mesmo a proximidade da morte
mesmo agora enquanto comem uma refeição enlatada
enquanto me dou conta de que alguns são
ainda até atléticos e musculares e necessários
e mesmo a sua extrema necessidade
alimenta o desejo de todas as coisas
a precisão de alguns instantes quando
rapazes jogam à bola debaixo dos olhares de leões
e as cidades são imponentes e inteligentes e sem perdão
como os aborrecidamente espertos quartetos de mozart
alguns fecham os olhos e inadvertidamente
deitam abaixo a última parede do mito
aquela que postulava que a inteligência que permite
ler os dias é uma espera posta à destruição
adormecendo alguns entrelaçam as mãos sobre o peito
como guerreiros medievais sepultados em túmulos de pedra
no coração das cidades
e é estelar o seu abandono como um fragmento
de vidro que se ilumina de repente na escuridão do ar
e mergulhados profundamente no sono
intuem a profundidade do azul na obscuridade da noite
as chamas que marcam as amuradas da noite
as coordenadas do sal na pele
para lá das horas em que escreveram
linhas em que declararam conhecer bem o sal
que se cola à pele vindo das orlas de certas praias no atlântico
e no entanto alguns persistem e aceleram
para lá do sono em carros que cortam pela noite
demasiado cansados e um pouco decadentes
na fronteira com a extrema incoerência
um pouco para lá do cansaço
para lá do facilmente evidente
Nápoles, 8 de Outubro de 2017
alguns sons antes da manhã
às vezes harmonia e desarmonia ganham fôlego
para se somarem em algo
que parece raro, definitivo, surpreendente
um cavalo ferido em contraluz
nos campos de nevoeiro
ergue-se finalmente diante dos olhos
não exactamente música
mas um pedaço da minha vida
cifrado no estrépito de uma voz
que desce em ângulos
de ironia e esperança
alegria e indiferença
e rebate na luz dos olhos baixos
acendendo-se apagando-se
trouxe-me aqui uma memória
que insistiria em atravessar um continente
por poucas horas, uma garrafa de vinho
a vitalidade de uma certa
quantidade de conversa fiada
numa sucessão de acontecimentos
que não conjuram exactamente uma ordem
embora tu ao contrário de mim
acredites que há no universo uma ordem
eu regressei mesmo pela extrema necessidade
de um pouco de caos
é preciso queimar este tempo
antes de entrarmos de novo na realidade
diz cinco minutos cinco horas
ou talvez a mais adequada forma fossem
as coisas mais imediatas mais fáceis
a espessura de um licor escuro e amargo
num copo minúsculo e raso
ou de uma chávena cheia de café
de manhã, no estômago vazio
os meus ouvidos atentíssimos
plantados entre os leões
assaltados pelo tilintar de colheres em chávenas
facas e garfos contra os pratos
famílias inteiras rindo
e enchendo as mesas para jantar
enquanto sobre mim se abate
a absurda ideia de que nem sequer
ouvi os teus passos afastarem-se
que devemos ser agora um pouco
menos misteriosos mas mais reais
em algum ponto da cidade
os sinos da catedral maceram o ar
e aquele martelo que ouvi
trabalhar ao longe
os golpes desferidos a intervalos regulares
sobre a pedra
foi-se silenciando
mas vai daqui a algumas horas ou dias ou meses
acertar-me em cheio no centro do torso
esmagar-me o peito no mais absurdo
tropeço de ternura
todo o vidro desta atmosfera é febril
tilinta nas conversas
que se vão distanciando
mas não há mais nenhum rosto
para além do teu
e não há já ninguém
não resta quase resíduo nenhum
de tudo o que existe e é real
a estas horas toda a cidade está vazia
daqui tu observas já
os pontos da cronologia
a que se hão-de agarrar
as garras e os ganchos desta madrugada
a fixação destes instantes
na história da vida de alguém
não sei como é que
à medida que o tempo acelera
à minha frente só a promessa
do incêndio da manhã
ainda a algumas horas de distância
é evidente
o girar cada vez mais rápido
de cada vez mais e mais cor
colando-se a cada minuto
de um carro que acelera a toda velocidade
para romper a primeira barreira da escuridão
quando ainda não percebo ao certo
se é noite ou manhã
e finalmente a abertura definitiva
um archote deflagrando entre dois instantes
precipitando-se da mão
de um anjo muito com os copos
e muito em desequilíbrio
que contra a harmonia do mais celeste dos coros
encena por apoteose
a tarefa de se atirar do alto da primeira arcada do céu
trazendo com ele fiapos de penas, confusão e desarmonia
como uma teimosa diva no último acto de uma ópera
de olhos fechados, de braços cruzados sobre o peito
para um tráfego de rolls royces lá em baixo
mas é ainda mais cómica a evidência
agora indisputada:
através do nevoeiro
despenhando-se contra os faróis:
a noite transformada em manhã
Roma, 19 de Dezembro de 2017